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Considerando as orientações apresentadas no documento Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) em Questões Relativas à Terra, do Conselho Federal de Psicologia (2013), vemos que a Psicologia, no contexto da realidade brasileira e latino-americana, tem enquanto um de seus deveres sociais a necessidade de pautar a discussão sobre os efeitos que as atuais Questões de Terra fazem repercutir na saúde, no bem estar e na subjetividade do povo. Isto posto pelo fato de que conflitos fundiários, lutas por demarcação de terrenos históricos, preservação de culturas territoriais, depredação ambiental e valorização de povos indígenas e quilombolas – entre outros exemplos – emergem como assuntos da atualidade e do cotidiano mais comum, seja nos espaços públicos de atuação da saúde e da assistência social, seja nas esferas de governo mais elevadas, a partir da ação dos movimentos sociais, ou ainda nas dinâmicas interpessoais cotidianas dos mais diferentes segmentos civilizacionais. E tudo isso trata de relações humanas, jogos de poder e circulação de capital (monetário e simbólico), constituindo-se enquanto matéria que produz afetação e sofrimento; ou seja, em última instância, campo de atuação da (e para a) Psicologia.

Seguindo a partir deste reconhecimento, e tomando por base alguns dos Princípios Fundamentais de nosso Código de Ética Profissional (2005), que nos diz que “a(o) psicóloga(o) atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural”, bem como que “a(o) psicóloga(o) considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código”, cabe-nos então questionar como, quando e onde será esta atuação das(os) psicólogas(os), e quais os elementos e dispositivos que nós efetivamente temos enquanto estratégias de ação diante de uma temática ainda tão parcamente discutida dentro da realidade da Psicologia Brasileira, científica, política, profissional e academicamente.

Hoje, enquanto principal campo de atuação de psicólogas(os) que trabalham com algum tipo de atendimento direto a pessoas envolvidas em contextos onde Questões de Terra emergem como demandas, poderíamos referenciar o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), mais especificamente a partir da ação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e – principalmente – dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

Tomando por base a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei Nº 8.742, de 07 de Dezembro de 1993), temos que os CRAS oferecem serviços de assistência social às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade social, ou seja, pessoas que estão expostas às dinâmicas da exclusão social. De forma geral, têm como objetivo o trabalho em prol do fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (estes últimos importantíssimos para a discussão das Questões de Terra), e buscam empoderar os sujeitos foco de sua atuação no sentido da promoção de sua autonomia e suas potencialidades. Já os CREAS funcionam como unidades centrais de referência que atuam ao nível da articulação de uma rede de proteção social especial de média e alta complexidade. Têm sua atuação direcionada especificamente para contextos onde já ocorreram as violações de direitos, direcionando assim seu foco de trabalho também para a família e a comunidade, mas a partir da perspectiva de potencializar e fortalecer uma função protetiva. Além disso, dentre seus serviços, os CREAS realizam acolhimento institucional, familiar e comunitário, bem como proteção em situações de risco, calamidades públicas e/ou emergências.

Por conta do seu caráter de ação especificamente voltado para situações de violações de direitos, os CREAS ganham uma importância mais elevada no debate das Questões de Terra, posto que, em sua maioria, as notificações que ocorrem relacionadas a conflitos fundiários, por exemplo, se dão quando os embates já estão estabelecidos, e faz-se necessária uma intervenção articulada (e em rede) ao nível individual e sócio-comunitário. Logo, dentro destes serviços, o trabalho deve dar-se de forma multiprofissional e interdisciplinar, fugindo do modelo clínico exclusivista que, por vezes, tende-se a atribuir ao trabalho em Psicologia. É preciso que a atuação esteja fortemente referenciada em outros campos de conhecimento (como o Serviço Social, o Direito, a História, as Ciências Sociais e a Saúde Pública), assim como combinada com os conhecimentos já produzidos pela Psicologia de base Social Comunitária e Sócio Histórica.

Todavia, essa atuação não deve dar-se apenas ao nível da ação imediata e direta das equipes interdisciplinares – e, logicamente, das(os) psicólogas(os) – que atuam nos dispositivos já mencionados; é preciso que este trabalho esteja intensamente correlacionado com outras esferas que produzem ações que extrapolam o trabalho em Psicologia, a exemplo de ações de cunho investigativo legislativo.

Sendo assim, cabe referenciar, a princípio, os Ministérios Públicos (Estadual e Federal), enquanto instâncias constitucionais autônomas, posto seu dever de zelar pela defesa da ordem jurídica, dos interesses sociais e do próprio Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, os Ministérios Públicos podem atuar enquanto “fiscalizadores” dos processos e procedimentos assumidos diante de comunidades e povos tradicionais, que tenham seus direitos feridos pela ação de indivíduos ou do próprio Estado e seus múltiplos braços de ação. Em paralelo, podem ser acionadas também as Defensorias Públicas (Estadual e Federal), que atuam a partir da garantia e da promoção das políticas públicas de assistência e orientação jurídica, integral e gratuita aos necessitados, sob a ótica dos Direitos Humanos – garantindo, assim, que toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que não tenha condições para arcar com os custos de ações judiciais e/ou contratar um advogado para a defesa de seus direitos, obtenha tais benefícios.

Já pela via da garantia da preservação ambiental, reconhecendo o espaço territorial de um povo como elemento constituinte de sua subjetividade e, portanto, de seu bem estar biopsicossocial, é possível atuar em parceria com as instâncias governamentais que regulam, fiscalizam, monitoram, disciplinam e investigam o uso dos recursos naturais brasileiros – a exemplo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO).

No que tange à questão dos conflitos fundiários, é preciso fortalecer a ação conjunta de determinados órgãos do estado com segmentos dos movimentos sociais. Dessa forma, faz-se preciso cobrar do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) uma atuação que não privilegie os grandes latifundiários brasileiros, mas que parta de premissas sérias e idôneas ao tratar de assuntos como Reforma Agrária (uma de suas principais funções) e demarcação de terrenos históricos – sempre em diálogo com organizações históricas de nosso país, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

Para tratar da valorização de povos indígenas e quilombolas, reconhecendo-os a partir de seu lugar histórico, e legitimando a demarcação de seus territórios como legados culturais da História da Bahia e do Brasil, podem ser feitas ações conjuntas com a Fundação Cultural Palmares (FCP) – instituição pública, vinculada ao Ministério da Cultura, que tem por finalidade a promoção e a preservação da Cultura Afro Brasileira, e que atua também no sentido de fortalecer as ações de demarcação de territórios tradicionais, a exemplo de áreas reconhecidas como remanescentes de Quilombos.

Diante de tudo o que foi apresentado, cabe-nos pensar que o lugar da Psicologia, no sentido de suas práticas, deve circundar seguramente o lugar de um posicionamento político. Logo, lutas como a realizada pelo Conselho Regional de Psicologia da Bahia, em 2013, que emitiu apoio aberto à comunidade do Quilombo Rio dos Macacos – comunidade próxima a Salvador/BA, que estava sofrendo ações coercitivas da Marinha de Guerra do Brasil para a desocupação do espaço, com fins de uso militar – devem servir como protótipos de boas práticas à categoria, exatamente pelo reconhecimento de que a atuação em Questões de Terra, frente à realidade do Brasil, nos convida a uma caminhada que transita entre o profissional e o político, bem como entre o que está institucionalizado e o que precisa ainda ser criado, inventado.

Por fim, cabe dizer que ainda se faz fundamental pensar outros dispositivos que direcionem sua atuação especificamente para situações onde a intervenção, profissional e do Estado, ainda se dá de forma incipiente – a exemplo de contextos de violência e morte no campo. Para tal, de forma que a(o) psicóloga(o) possa estar imersa(o) neste trabalho com um olhar diferenciado, é básico que essas discussões sejam iniciadas na esfera das graduações, de modo que possamos construir uma Psicologia que, para além de estar constantemente com seus olhos voltados para os contextos da vida citadina, possa também olhar, “cara a cara”, as problemáticas e os sofrimentos que os homens e mulheres da zona rural brasileira enfrentam dia após dia, ao longo de toda a nossa História.

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