Publicado em 09 outubro de 2020 às 21:34
O Conselho Regional de Psicologia da Bahia – 3ª Região (CRP-03), em defesa dos direitos de pessoas com deficiência, torna pública a:
Nota de Repúdio ao Decreto da Política Nacional de Educação Especial
No último dia 30 fora lançada a Política Nacional de Educação Especial, pelo governo federal, através do Decreto 10.502/2020. Esse decreto possui natureza inconstitucional, excludente e capacitista, merecendo a atenção de todas e todos, uma vez que alguns de seus dispositivos são contrários ao que preconizam os especialistas em Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, os Ordenamentos Jurídicos e os movimentos sociais de defesa dos direitos das Pessoas com Deficiência.
O Decreto informa que tem como objetivos “garantir os direitos constitucionais de educação e de atendimento educacional especializado”, promover ensino de excelência aos educandos da educação especial, em todas as etapas, níveis e modalidades de educação, em um sistema educacional equitativo, inclusivo e com aprendizado ao longo da vida, sem a prática de qualquer forma de discriminação ou preconceito. Entretanto, tais objetivos e seus desdobramentos conceituais apresentados como “inovações” configuram-se em nítidos retrocessos frente às conquistas históricas das Pessoas com Deficiência que precisam ser alvo de constante reflexão e revisão, além de debate amplo para com a sociedade.
A história da educação no Brasil é marcada por um processo de exclusão, tendo em vista que o seu modelo de organização das estruturas físicas, metodológicas e avaliativas homogeneizador, baseado na idealização de um tipo de sujeitos, beneficiou determinados grupos em detrimento de outros. Somente a partir do processo de redemocratização do país e a promulgação da Carta Magna, a educação passou a ser direito de todas e todos e dever do Estado.
No que tange às pessoas com deficiência, esse direito só passou a ser assegurado legalmente anos mais tarde, após lutas históricas dos movimentos sociais e da sociedade civil contra a exclusão e a segregação imposta pela Educação Especial. Essa modalidade de ensino, durante muitos anos, substituiu o ensino regular baseado na ideologia capacitista de que as pessoas com deficiência não estariam aptas a frequentar a rede regular de ensino. Ancorado em um modelo biomédico de compreensão da deficiência, a Educação Especial como modelo substitutivo, além de contribuir para a desresponsabilização das estruturas sociais corponormativas excludentes, não contribui para o pleno desenvolvimento das habilidades e potencialidades dos sujeitos.
A Convenção Internacional de defesa dos direitos da Pessoa com Deficiência, que tem caráter constitucional no Brasil, se caracterizou como o principal marco que, dentre outros direitos, assegura a inclusão na rede regular e veda expressamente a discriminação no acesso de qualquer pessoa à rede de ensino em razão da deficiência. Nesse sentido, o decreto atual viola a proteção dos direitos das pessoas com deficiência e o sistema jurídico brasileiro. Assim, não cabe ao Estado, à escola e às equipes multiprofissionais fazer distinções sobre quais tipos de deficiência estariam aptas a frequentar a escola, tampouco colocar essa decisão nas mãos das famílias – vale ressaltar que, em nenhum momento, é posto como escolha. Ao fazer isso, o estado se isenta da sua responsabilidade constitucional de garantir a educação a todas e todos, além de deslocar uma questão estrutural e social para uma ordem individual.
Quando se fala em educação inclusiva, é notório que a luta pela inclusão escolar tem muito o que avançar, mas não é retrocedendo que será alcançado o patamar que desejamos. Sabemos que são muitos os desafios e muitas famílias se sentem desamparadas, mas são barreiras que só serão superadas no enfrentamento e debate conjunto, incluindo, principalmente, as pessoas que são diretamente afetadas pelas medidas propostas. A falta de discussão entre as entidades de defesa da pessoa com deficiência e a não participação dessas pessoas demonstra que tal decreto não abriu espaço para esse debate, o que acaba por impedir o direito de expor e contribuir com decisões acerca da sua própria existência.
Cogitar o processo de educação, onde indivíduos necessitam ser segregados pelas suas diferenças é regredir em todo o processo que a inclusão tem alcançado ao longo desses anos, visando cumprir o objetivo de buscar alcançar uma sociedade equitativa, justa e igualitária. Esse retrocesso não só acarretará danos para as pessoas com deficiência, mas também para a sociedade como um todo. Sabendo-se da importância do âmbito escolar para a potencialização dos sujeitos, torna-se indispensável frisar que tal decreto cria um muro entre crianças com ou sem deficiências no sentido desenvolvimental, uma vez que estabelecer uma estrutura separatista embutida no âmbito escolar faz com que as crianças não tenham as mesmas possibilidades de desenvolvimento, convívio com as diferenças e possibilidades de escolarização, o que reforça uma estrutura social ainda desigual.
Alguns direitos não podem ser relativizados, especialmente quando ainda lutamos para efetivá-los. É dever do Estado e papel da sociedade aprender a conviver com as diferenças e tornar as estruturas materiais e simbólicas de modo que possibilitem a participação plena e efetiva de todas, todos e todes; é o que torna uma sociedade equitativa, justa, igualitária e acolhedora.
Assim, afirmamos que a retomada das Escolas e Classes Especiais possui consequências enormes para as relações e a socialização. O ambiente educacional inclusivo tem o papel de preparar os indivíduos para viver em sociedade. A sociedade é múltipla, e a escola, sendo um reflexo dessa sociedade, deve formar sujeitos aptos a lidarem com a pluralidade da existência humana. O mundo fora da escola não terá um ambiente exclusivo para pessoas com deficiência, e deve partir dela uma abordagem compatível com as diversidades, de forma que todos os sujeitos tenham, à sua maneira, o direito a um desenvolvimento pleno, na busca por uma sociedade menos capacitista e mais equitativa. Por tudo isto, somos contra a Nova Política de Educação Especial!
Conselho Regional de Psicologia da Bahia – 3ª Região (CRP-03)
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