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CRP-03 publica nota sobre Janeiro Branco

Publicado em 17 janeiro de 2017 às 19:28

CRP-03 publica nota sobre Janeiro Branco

É com afeto que o Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03) acolhe as iniciativas de nossa categoria. Não seria diferente com a Campanha Janeiro Branco que, apesar de ter sido organizada por psicólogas/os, já é um movimento nacional, que conta com os mais diversos setores da sociedade civil. O projeto é uma excelente iniciativa, que precisa ser conduzido com zelo para que a proposta não se perca.

A Campanha intitulada Janeiro Branco convoca a sociedade brasileira, e cada cidadão individualmente, a cuidar de sua saúde mental[1]. Na página virtual da Campanha[2] está definido como proposta uma campanha que busca mostrar às pessoas que elas podem se comprometer com a construção de uma vida mais feliz para si mesmas. Atrelado a esse convite, a campanha projeta a abertura de uma vida repleta de oportunidades, projetos e sonhos que podem aumentar a probabilidade de realizações, caso haja o citado comprometimento.

A Campanha é pensada como análoga à espera do ano novo em que possa trazer boas novas. Por isto, a referência à festa de réveillon e ao poema Receita de Ano Novo de Carlos Drummond de Andrade. Desse modo, o Janeiro Branco traz as marcas ideológicas da virada do ano, tendo o mês de janeiro como o marco do despertar. Em síntese, os objetivos da campanha são demarcar janeiro como a data oficial de debate sobre a importância da saúde mental na vida das pessoas, levando-as a si comprometer com a felicidade que está por vir, em busca do bem-estar.

Antes de convocar a tomada de consciência das pessoas e da comunidade, talvez seja prudente que nós, psicólogas/os, convoquemos a nós mesmos para refletirmos sobre a nossa prática. É preciso que nós cultivemos a consciência política de que as pessoas partem de lugares dissimétricos. Festa de fim de ano, não é para todos, pois existem aqueles que não são nada e que valem menos do que a bala que os mata[3]. O CRP-03 entende que, para conseguirmos fazer com que as pessoas se responsabilizem por sua saúde mental e alcancem a felicidade e o bem-estar, é preciso que nós reflitamos de que lugar nos posicionamos quando elaboramos uma campanha como a do Janeiro Branco.

A escolha da palavra branco parece ser inadequada pois, associada à ideia de felicidade e bem-estar, carrega a memória histórica dos doutrinadores dos corpos de outrora: antes a igreja, hoje a medicina.  

Michel Foucault nos lembra que essas instituições, através de suas morais criaram uma modalidade da relação da pessoa consigo, através de uma lei geral que é similiar a vontade de um deus pessoal[4]

De que lugar falamos quando defendemos a ideia de que uma pessoa pode alcançar a felicidade e o bem-estar? Zygmunt Bauman foi o teórico responsável por forjar o conceito de liquidez para explicar a contemporaneidade. Sua tese: não há mais referenciais, não é possível mais pensar as relações pelos modelos disciplinares. Essa suposta liberdade também foi determinante na aparição daquilo que ele chamou de mal-estar na contemporaneidade. Outros intelectuais haviam se debruçado sobre essa sensação incômoda que o convívio com os outros traz. Dentre os estudos mais famosos estão Mal-estar na cultura e A náusea de Freud e Sartre, respectivamente. Por isto, os alicerces fundamentais da Campanha Janeiro Branco precisam ser melhor argumentados.

É preciso uma fundamentação teórica contundente para que a Campanha do Janeiro Branco não deslize para o discurso da moral. Nosso país e estado tem um histórico de desigualdades e opressões que refletem, atualmente, no acesso aos serviços de saúde mental. A leitura das obras de Michel Foucault pode ser bastante útil para a descoberta do emparelhamento histórico entre pressupostos moralistas e práticas clínicas. Não podemos desconhecer a construção histórica da clínica[5], muito menos o paradigma da clínica ampliada[6].

O que é ter uma boa saúde mental? Ser feliz é estar bem? E se a loucura for a sanidade, como aconselha Eduardo Galeano com o seu direito ao delírio? O direito não é uma coisa que nasce com a pessoa. O direito precisa ser garantido por políticas públicas, pela sociedade civil e iniciativa privada. A psicose não é o quadro descritivo que aprendemos em psicopatologia. Os sintomas que caracterizam a psicose são consequências da elaboração de políticas públicas que garantam o direito de delirar. Assim como devemos lutar pelo direito ao delírio, a criança tem direito de brincar, direito este negado pelas escolas em tempos de medicalização da vida, educação e da sociedade.

O CRP-03 entende que o chamado de que psicoterapia não é só para loucos, e sim, para o sujeito normal O que precisamos repensar é a nossa própria compreensão da loucura, não como desordem, transtorno ou síndrome, mas como posicionamento subjetivo que, em relação à lógica racional, demarca nossa experiência com a alteridade radical.

O movimento de conscientização das pessoas acerca de sua saúde mental não pode ser pensado como um processo natural que irá se desenvolver a partir de ações informativas. O direito sempre foi da ordem da luta e da conquista. Faz-se necessário uma articulação com os diversos setores e atores sociais. Se por um lado há a defesa do acesso à psicoterapia, por outro devem haver ações que proporcionem maior qualidade da saúde mental coletiva e individual a partir da promoção de vida custeada com políticas públicas que convirjam em acessibilidade para os menos favorecidos historicamente. A consciência é tomada, não é coisa que nasce no aparelho biológico, mas artigo de luxo, pois educação, no Brasil, é privilégio e, segundo Anísio Teixeira, a escola é fábrica de fazer cidadão.

É importante que todos possam ter oportunidade de acessar um psicoterapeuta, contudo, precisamos promover, em paralelo com a conscientização, o fortalecimento dos espaços públicos bem como de suas políticas para que seja possível sofrer recorrendo o mínimo possível a um psicoterapeuta. Este tipo de raciocínio obriga a psicologia a sair da clínica e ocupar os mais diversos espaços sociais.

Este é o posicionamento que o CRP-03 tem diante da Campanha do Janeiro Branco. Nós acolhemos de abraços abertos a iniciativa, reconhecendo, no entanto, a necessidade de uma reflexão profunda por parte da categoria a respeito dos pressupostos que envolvem a proposta da campanha, respaldando suas ações na diversidade brasileira e nos princípios constitucionais, para que as intempéries das críticas não enfraqueçam o movimento.

[1] Um dos slogans é Cuidar da mente é cuidar da vida.

[2] janeirobranco.com.br/projeto-janeiro-branco

[3] Referência ao texto de Eduardo Galeano As pulgas sonham em comprar um cão, e…, disponível em: https://pensador.uol.com.br/frase/Njc2OTk1/

[4] FOUCAULT, M. História da sexualidade: o cuidado de si. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. v. 3, p. 205

[5] FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Tradução: Roberto Machado. 6. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

[6] Ver: LANCETTI, Antônio. A Clínica Peripatética. São Paulo: Hucitec, 2007.

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