Publicado em 30 setembro de 2016 às 19:27

No final do mês de conscientização sobre a prevenção do suicídio, o CRP-03 entrevistou a psicóloga Soraya Rigo que atua no Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (NEPS). A psicóloga também participou do debate, promovido pelo CFP, Suicídio e os desafios para Psicologia, que se tornou uma publicação posteriormente.
CRP03: Como o livro “Suicídio e os desafios para Psicologia” pode contribuir com as práticas das/os psicólogas/os neste assunto?
Soraya Rigo: Considero importantíssima a iniciativa do Conselho Federal de Psicologia em promover o debate e publicar em formato de livro. Este que é um tema tão importante, responsável por tantas vidas interrompidas e ao mesmo tempo tão negligenciado pelas autoridades públicas e pela sociedade em geral. O livro possui informações valiosas para a prática da/o psicóloga/o, não apenas por desmitificar o fenômeno do suicídio, como também por oferecer reflexões sobre a ética e a técnica que envolvem o trabalho nesta clínica de urgência psíquica.
CRP03: Por que é tão difícil falar sobre suicídio?
SR: Falar sobre o suicídio é difícil por vários motivos, mas acredito que as principais razões disso possam ser resumidas em duas. O primeiro é o tabu criado pela Igreja católica em torno do ato suicida, a partir da Idade Média, que continua exercendo influências até os dias atuais, sobre o modo como o vemos e interpretamos. Santo Agostinho conferiu ao suicídio o status de pecado mortal, enquanto São Tomás de Aquino, fez do suicídio o pior dos pecados, e do suicida, um mártir de satã. Nesse período da história era negado ao corpo do suicida um enterro cristão. Esse cadáver além de ser sepultado fora dos limites das cidades, tinha suas mãos amputadas, uma estaca cravada no coração, e por vezes uma pedra sobre o rosto, para garantir que o espírito do suicida não ficasse vagando pelas cidades.
A família do suicida era desonrada além de ter seus bens confiscados pelo Estado. Sobre a segunda razão, tenho o seguinte ponto de vista: sabemos muito pouco acerca da morte, não muito mais do que aquilo que faz limite, põe um fim a vida. A morte é um fim, mas o que acontece após, ainda é um enigma. Isso quer dizer que para o ser falante, a ideia de finitude, o que a psicanálise denomina de castração, não é algo fácil de lidar. De maneira que, para muita/os, é preferível pensar que a vida não termina com a morte, e que ela permanece sob a forma seja de energia, de espírito, de anjo, no céu, no inferno, em outro planeta, etc. Cada uma/um busca aquela religião, filosofia ou crença que ofereça as respostas que melhor atendam às suas necessidades e anseios. A única experiência que se tem da morte é com a morte do outro, e não com a própria. Freud afirmava que não há uma representação da morte no inconsciente, razão pela qual, suponho que esse seja um assunto que não se sabe, não se quer e não se “deve” falar, pois, como se diz na Bahia, “prá não atrair”.
Se entendemos a morte como castração, falar dela é como olhar fixamente para o Sol: evitamos, por não suportarmos encará-lo por muito tempo, e se forçamos, em poucos instantes não vemos mais nada, a não ser um clarão ou a escuridão. De maneira que só é possível olhar de frente para o sol com a proteção de óculos com lentes escuras, e com filtros. Com a morte, não é muito diferente. O sujeito busca a religião, por exemplo, e através deste filtro, sente-se protegido para encarar a morte. Desse modo, na nossa cultura ocidental, a morte é um tabu sobre o qual não devemos falar, pois dá azar, é pessimismo, depressão ou loucura. E o suicídio, “nem se fala”. A morte voluntária, como também é denominada essa enigmática escolha de alguns sujeitos, é ainda mais difícil de ser falada. Portanto, se a morte ou suicídio são temas que não se deve falar, consequentemente, são assuntos que não se quer ouvir. Nesse sentido, em última instância, convidar o sujeito a falar da morte, é convocá-lo a falar da vida. Nesses casos, falar da vida, normalmente é pior do que da morte, uma vez que, ouvir alguém que já decidiu pela morte é antes, ouvir sobre o insuportável da vida.
O sujeito suicida, ao expor seu sofrimento na vida, expõe também aquilo sobre o qual o outro não quer saber, isto é, sua incompletude, sua imperfeição, sua alienação, sua ilusão sobre uma existência regida por uma ordem superior, que não é a divina, mas a do capital. Quando um sujeito se decide pela morte, seu suicídio denuncia a vida, vida marcada por uma série de fracassos e muito sofrimento. Por essa razão, minha hipótese é que as pessoas não querem ouvir sobre a morte, justamente porque não querem ouvir sobre a vida, ou melhor, sobre o inexorável da vida, e consequentemente, não querem saber da ilusão que a recobre.
CRP03: Já está provado que conversar sobre suicídio pode ajudar às pessoas com esse pensamento. Como isso deve ser feito?
SR: No contraponto desse contexto cultural está a psicanálise que, através de sua regra fundamental, convida o sujeito a falar, justamente por acreditar que, enquanto um ser de linguagem, ele estará permanentemente vulnerável aos seus efeitos e equívocos, responsáveis por seus sintomas e seu sofrimento. Pode-se dizer que diante do real, ou seja, do impossível, do inefável da existência, o sujeito tem 3 opções: falar, adoecer ou atuar. Nessa perspectiva, frente à impossibilidade, quer dizer, ao real, diante do qual o sujeito tem que se posicionar eticamente, aquilo que não pode ser dito, se inscreve no corpo ou no pensamento sob a forma de doença.
Poderá ser localizado e, portanto, falado no corpo sob a forma de doença ou como doença do pensamento; ou o que não pode ser dito, pode ser atuado, isto é, uma fala atuada, um ato, um acting, um acting out ou uma passagem ao ato. Em resumo, quando na vida nos deparamos com aquilo que nos impacta, nos divide, a psicanálise propõe que o sujeito fale desse impossível de ser dito. Falando ele construirá um saber sobre o real, quer dizer, sobre o impossível. Por outro lado, não usar as palavras para falar sobre isso, o impele a expressar seu mal-estar através do próprio corpo, pelo simples fato do corpo ser sensível ao significante. Entretanto, algumas vezes, mesmo que o corpo tenha se oferecido para tal fim, o sujeito atua, faz sua fala em ato, uma fala atuada.
Falar é a tradução da angústia em significantes. E de todos os atos, o suicídio que já foi considerado por Lacan, como o único ato bem-sucedido, acabado, como todos os atos, é um ato falho, justamente por que ele é uma demonstração de que o sujeito nada quer saber. O ato suicida é uma forma de lidar com o sofrimento, mas também uma resposta diante do impossível da existência, isto é, do real.
Por essa perspectiva, concluímos que a psicanálise, ao convocar o sujeito a falar, estará permitindo que ele possa não apenas falar sobre a morte, mas, sobretudo sobre a vida, esse impossível diante do qual, muitas vezes o sujeito se vê sem saída, restando-lhe a morte como única alternativa. Nesse sentido, em última instância, convidar o sujeito a falar da morte, é convocá-lo a falar da vida.Talking cure (FREUD), a cura pela palavra, através daassociação livre. Diante das especificidades desta clínica o maior desafio o psicólogo(a) é fazer com que o sujeito fale no lugar de atuar e assim possa se implicar no seu ato e demandar um tratamento. Desta maneira, o tratamento deverá possibilitar que a pulsão de morte, esse apetite pela morte, dê lugar ao desejo de saber, permitindo o reaparecimento do sujeito que fora abolido pelo ato. A partir daí, que ele possa encontrar outras formas de expressar seu sofrimento, que não no ato suicida, dando um novo sentido à vida, uma vida onde exista lugar para o sonho.
CRP03: No Brasil, em média a cada 45 minutos uma pessoa tira a própria vida. Quais políticas públicas você acha que devem ser criadas para reduzir essa realidade?
SR: As Políticas Públicas devem tentar minimizar os fatores de risco através de fatores protetores. Ou seja, as políticas devem não apenas disponibilizar serviços de atendimento psicossocial e de curta internação para pessoas em risco de suicídio, como também promover campanhas de prevenção. Isso através de informações responsáveis e efetivas sobre o tema junto a sociedade, bem como possibilitar a capacitação de profissionais da saúde tanto geral quanto mental, dando-lhes ferramentas para identificar e tratar pessoas em risco de suicídio. As políticas também devem incluir a preocupação das autoridades em restringir o acesso a armas de fogo e a substâncias tóxicas, assim como impedir a construção de pontes e prédios que ofereçam acesso a locais de riscos de suicídio.
CRP03: Como você acha que as/os psicólogas/os devem atuar quando se deparam com pacientes com ideias de suicídio?
SR: A princípio, a/o psicóloga/o deve ter uma postura acolhedora, convocando o sujeito a falar sobre seu sofrimento, através de uma escuta atenta, interessada e livre de julgamentos ou preconceitos. Deve sempre levar a sério e não desafiar o paciente. É necessário manter uma atitude ética e ativa, o que quer dizer seguir o código de ética profissional, especialmente os Artigos 9º. e 10º. que versam sobre as questões do sigilo e das situações onde ele deve ser quebrado, sendo o risco de suicídio uma delas. A/O psicóloga/o deve ter bom senso e tomar todas as decisões relativas a proteger a/o paciente de um suicídio. Além disso, precisa saber que, a decisão pela morte é fruto de uma série de “desencontros” e decepções causadores de grande sofrimento.
Quando uma pessoa verbaliza “quero morrer”, isso não significa, necessariamente, que ela queira se matar. Muitas vezes, isso pode significar “eu não quero mais viver esta vida”. Por isso, passam a desejar ardentemente que lhe aconteça um acidente trágico ou uma doença fatal. Quando isso não ocorre, ela vai sendo sufocada e tragada pela dor e angústia de uma vida marcada pelo sofrimento. Se cansa de esperar por uma fatalidade do destino e termina tendo que tirar a vida com as próprias mãos. Por essa razão, a/o psicólogo deve sempre levar a sério as ideias de morte expressadas por uma/um paciente.
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