Publicado em 05 novembro de 2014 às 18:59

A fim de reafirmar seu compromisso com a luta e dar visibilidade ao dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o CRP-03 entrevistou a psicanalista, psicóloga e educadora, Marília Carvalho Soares (CRP-03/2253), mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Clique aqui e confira!
1- Através da sua prática profissional, como você percebeu a importância do tema das relações raciais e como aborda esta temática?
Inicialmente foi a minha trajetória pessoal que orientou o meu interesse pelo tema das relações raciais. Sendo mulher, negra, psicóloga, educadora, psicanalista, dentre tantos outros papéis sociais que assumo, vivencio muito de perto a experiência do racismo. Na graduação comecei a pensar sobre as relações raciais de forma mais sistemática. Este já era um tema importante para mim, incluindo também a maneira como eu via a Psicologia e pensava nossas práticas. A temática das relações raciais sempre esteve presente na minha prática profissional. A minha condição de mulher negra e o meu desejo de dar voz aos sintomas vinculados ao racismo estão continuamente presentes no meu cotidiano de psicóloga. Abordo o tema nas minhas aulas, realizei uma pesquisa de mestrado intitulada “Relações Raciais e Subjetividades de Crianças em uma Escola Particular na Cidade de Salvador”, estudo, escrevo e articulo o tema do racismo através da teoria psicanalítica. Além disso, apresento trabalhos em jornadas de psicanálise compartilhando inquietações sobre o tema com colegas psicanalistas e também realizo exercício da clínica com um olhar atento à temática racial, às formas como o manejo da transferência possibilita tal trabalho. Trata-se de uma escuta sensível às marcas que o racismo imprime, ao sofrimento psíquico que se articula de forma particular, comunicando a história de cada sujeito em sua singularidade, mas também expressando interações dialéticas do racismo enquanto sintoma social.
2- Como você vê o tema das relações raciais no âmbito da Psicologia? Considera que há estratégias para que houvesse um compromisso maior, por parte de psicólogas/os e estudantes, no combate à discriminação racial e ao racismo? Quais seriam?
Parece que a questão do racismo ainda é negada pela grande maioria das/os psicólogas/os brasileiras/os. O mito da democracia racial convenceu aos profissionais da área de que este não seria um tema relevante, sendo deixado de lado ou pouco contemplado em nossas práticas e investigações. Em Psicologia ainda acredita-se em uma sociedade desracializada e\ou miscigenada. No entanto é importante reconhecermos que algumas (alguns) poucas/os profissionais e instituições têm feito trabalhos significativos acerca do preconceito racial em nosso país. Um importante exemplo recente é o Grupo de Trabalho sobre Racismo e Saúde Mental realizado pelo Ministério da Saúde, desde abril deste ano, contando com a participação das/os psicólogas/os Maria Lucia da Silva (Instituto AMMA Psiquê e Negritude) e Marcus Vinicius Oliveira (UFBA). Ainda cabe registrar a importância dos dois PSINEPs (Encontro Nacional de psicólogas/os Negras/os e Pesquisadoras/es das Relações Raciais e Subjetividades) ocorridos em 2009 e 2014. Este evento faz parte de um momento histórico no que diz respeito ao início de um posicionamento da Psicologia no que tange ao preconceito e à discriminação racial.
Penso que as estratégias de combate ao racismo estejam relacionadas à possibilidade de começarmos a falar sobre o tema, pesquisar, incluindo nos currículos e nas pautas das ações políticas desenvolvidas nos diferentes âmbitos em que a Psicologia se insere. Isso está no princípio. São algumas (alguns) profissionais que incluem esta reflexão num ativismo cotidiano. Ainda é pouco, mas já iniciamos.
3- Quais são os principais desafios para a garantia de direitos da população negra? Como você vê a contribuição da Psicologia como ciência e profissão neste processo?
Creio que o maior desafio seja vencer o silêncio, mas já começamos a falar. O racismo enquanto sintoma social começou a ganhar voz. As políticas afirmativas, as cotas, dentre algumas ações atuais de combate ao racismo, começam a produzir ruídos até então sufocados. É preciso que haja barulho mesmo! O racismo é um sinal de mal-estar na civilização, cujos efeitos são possíveis de serem acolhidos em nossos consultórios e nos demais espaços de atuação em Psicologia. Somada às experiências como educadora, a escuta clínica que venho realizando ao longo dos últimos dez anos faz-me refletir diariamente acerca da violência do racismo e seus efeitos psíquicos. A baixa auto estima, memórias de uma infância ferida, registros de experiências racistas que inibem, deprimem, produzem conflitos intensos na relação com o próprio corpo negro, com as marcas da negritude que se apresentam através do nariz largo, do cabelo crespo submetido a um sem número de tratamentos na intenção de “resolver sua rebeldia”. A branquitude é uma exigência, uma busca inatingível e insistente. Ela se articula por meio de um discurso sutil que atravessa a mídia, se reproduz na família e entre as crianças, é transmitida nas escolas por meio das diferentes disciplinas. Esse ideal de brancura parece nos perseguir. A fim de diminuir as diferenças, negras/os se desdobram por alcançar um ideal de branquidade. É impossível para a/o negra/o não se deparar com as ameaças que lhe chegam a todo momento. O racismo é uma expressão da violência e como poucas vezes se formula explicitamente, circula silencioso, velado.
E nós, psicólogas/os, como nos colocamos diante deste cenário? Como lidamos com o desafio que é a busca por garantir os direitos da população negra? A psicologia como ciência e profissão precisa dar conta de uma dívida histórica. O diminuído empenho de psicólogas/os brasileiras/os em estudos relativos ao racismo expõe a necessidade de um olhar mais atento e urgente no que se refere a esta temática.
Penso que estamos todos envolvidos nas sutis articulações que compõem este fenômeno. Para nós que vivemos em Salvador, cidade mais negra fora da África, o racismo é algo tão próximo, cotidiano e corriqueiro, mas reagimos muitas vezes como se fosse absurdo, uma aberração! Fanon nos disse: “Escuta, branco!”. Eu diria, nesta oportunidade, “Escuta, psicóloga/o!”.
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